segunda-feira, julho 09, 2007

Na Casca de Ovo

»Quando finalmente troquei algumas frases ao telefone com uma estudante de dança de nome Anna Schwarz, elas resultaram no nosso primeiro encontro. Tudo o que precisei foi de um telefonema.

Por mais difícil que seja recordar-me dos aniversários dos nossos filhos mais novos e netos, ainda me recordo daquela data: encontrámo-nos a 18 de Janeiro de 1953. Para mim – sempre percepcionei factos históricos como batalhas e acordos de paz como se ocorressem no presente – a data em que Bismarck desejou tornar o Segundo Império uma realidade ainda é útil, um facto que me ocorre sempre que me recordo daquele dia gélido – foi num sábado ou num domingo? – e ainda é menos evidente o desenrolar dos factos.

Tínhamos combinado encontrarmo-nos à uma da tarde na saída do metro da estação do Jardim Zoológico. Desde a altura que me tinha aleijado e perdido o meu relógio Kienzle entre Senftenberg e Spremberg, não tinha meio de saber as horas. Cheguei ao relógio da estação cedo, passeava de um lado para o outro, resistia à tentação por um pouco, depois tomava dois copos de água ardente numa banca perto, o que significava que o meu hálito cheirava quando a Anna surgiu à hora, parecendo mais nova do que vinte.


Havia algo de angular e arrapazado na forma como se movia. O nariz dela estava vermelho do frio. O que haveria eu de fazer com esta jovenzita toda a tarde? Levá-la de volta para o quarto de inquilino, onde as mulheres não eram permitidas, não me ocorreria a não ser algo a ser rigorosamente evitado. Poderíamos ter ido ao cinema na rua próxima, em Kantstrasse, mas o oeste lá exibido não me parecia o mais adequado. Por isso eu fiz o que nunca tinha feito antes, convidei galantemente a Fräulein Schwarz a acompanhar-me para café e bolos na Schilling em Tauentzienstrasse, ou terá sido na Kanzler em Kudamm?

Não sei o que dizer de como e onde passámos aquela longa tarde. Devemos ter falado: Qual é a sensação de dançar descalça? Tiveste lições de ballet em criança?

Ou teremos falado dos reis sem coroa da poesia, de Brecht lá para a parte leste da cidade e de Benn aqui no ocidente? Falámos de política?

Ou terei deixado correr, antes da primeira fatia de bolo, assegurado pelo efeito, que eu mesmo era um poeta?

Eu sou como um mineiro do ouro abanando a sua peneira, abano e abano, mas nem uma pepita brilhante, nem um pedaço de fineza, nem um eco de uma metáfora atrevida surge. Nem eu sei quanto bolo ou torta limpámos, e em quantos lugares, listados em qualquer das cascas de cebola. Passámos a tarde de uma forma ou outra.

As coisas não melhoraram até à noite, quando fomos absorvidos pelo famoso salão de então conhecido como o Eierschale (Casca de Ovo). Não é suficiente dizer que dançámos: encontrámo-nos na dança. Olhando para trás, para os dezasseis anos do nosso casamento, tenho que admitir que por mais amavelmente que nos esforçássemos, as únicas vezes que estivemos realmente próximos, como um só, um casal, foi quando dançávamos...

A banda no Eierschale percorria da Dixieland ao ragtime ao swing. Dançávamos todas as danças, dando o nosso máximo. Era como se tívessemos praticado juntos a nossa vida inteira. Um casal dançante feito de céu. Ocupávamos muito espaço. Quase não reparávamos que os outros estavam a olhar. Poderíamos ter continuado por uma pequena eternidade, à medida de braços, face a face, os olhos estabelecendo um pequeno contacto, os dedos pressionando suavemente, inclinando para fora para melhor fundir, rodopiando como um só em pés feitos para rodopiar, brincando com seriedade, para fora e dentro, para cima lá vai ela sem peso, mais rápida que o pensamento, arrastando-se mais devagar que o tempo.


Depois dos últimos blues – era por volta da meia-noite – levei-a ao eléctrico. Ela tinha um quarto em Schmargendorf. A história conta que entre danças eu disse, “Vou-me casar contigo”, e ela disse que tinha um amigo por quem estava seriamente enamorada, o que me levou a dizer, “Não faz mal. Podemos esperar.”

Começos fáceis compensam os tempos difíceis ainda por vir.«



Traduzido por Rui de Campos do inglês Peeling the Onion de Günter Grass, traduzido por Michael Henry Heim e publicado por Harvill Secker.

In Guardian 02.06.07 (Review, p. 6).

7 Comments:

At 09 julho, 2007 11:56, Anonymous Anónimo said...

Obrigado Fernando pelo comentário no Blogue "o Salseiro", coloquei um link para visitar-vos sempre.
Vocês ai em Braga também têm vindo a realizar um óptimo trabalho, meus parabéns!

Particularmente só li um livro do Gunter Grass e gostei de ler este texto. Dançar impedirá as pessoas de falarem de cultura? De boa poesia?
Claro está que não!

um grande Abraço

 
At 09 julho, 2007 14:15, Anonymous Anónimo said...

Ao Salseiro (http://tiburciosalseiro.blogspot.com/):
Agradeço o comentário.

Esclareço que o artigo «Na casca de ovo», sobre Gunter Grass é da autoria do Rui de Campos, que é o manda-chuva do blog há mais de um ano e continua cheio de força.
O seu a seu dono.

Fernando Vilas Boas

 
At 09 julho, 2007 16:01, Anonymous Anónimo said...

A "minha confusão" ficou logo esclarecida logo quando vi que o post anterior era da autoria do FVB e que quem postava era o Campos.
Minhas desculpas pelo "engano".
Aquilo que escrevo deixa de ser meu quando carrego no "enter" e respeito a sensibilidade alheia referente as "autorias", mais uma vez minhas desculpas.Não foi intencional.
E já agora parabéns para o Campos por ter aguentado o "Barco" durante um ano.

Abraço

 
At 09 julho, 2007 19:47, Anonymous Anónimo said...

Na minha pequena e insignificante opinião, cada um de nós casa, ou deveria casar durante os cinco minutos de cada dança. Afinal, sentir, confiar no par, conduzir e deixar-se levar não é mais que um casamento...

Obrigada a quem comigo partilha estes momentos, sou feliz a dançar!

SK

 
At 10 julho, 2007 20:36, Blogger de Campos said...

Também sinto o mesmo, com cada mulher que danço e estabeleço uma conexion, sinto que me caso com ela por instantes!

 
At 10 julho, 2007 22:33, Anonymous Anónimo said...

o olhar, as mãos, o corpo, a pele, e acima de tudo, o sentimento... o par em comunhão total. perfeito.
boas danças :)

p.s. parabéns campos por mais um texto delicioso!

 
At 12 julho, 2007 12:04, Anonymous Anónimo said...

Também sou muito feliz quando danço... So tenho pena dançar pouco com quem amo...

Beijos a todos. estes textos cada vez estão melhores... mais inpiradores... Bonito!!!!

 

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