Porque dançamos – Parte II
Há muitos motivos para dançar e cada um terá os seus.
Pelo movimento.
Pela música.
Pela companhia.
Para combater a solidão.
Ouvi dizer que as águias vivem quase tanto como um ser humano.
Porém, a meio da vida tem as garras demasiado crescidas e flexíveis, o bico curvado em excesso e as penas demasiado rígidas e pesadas.
Por isso, cada águia tem de tomar uma decisão: ou muda ou morre.
Mas mudar implica grande sofrimento, pois tem de arrancar as penas e as garras, bem como tem de bater com o velho bico numa pedra até este se soltar.
Assim fica longos dias a sofrer e à espera que cresçam as novas penas, um novo bico e novas garras.
Depois parte para um renascimento.
Para um novo voo, como se fosse o primeiro.
Por vezes olho para a sala de dança e penso em quantos lá procuram renascer.
Quase consigo ver penas, e bicos e garras espalhados pelos cantos.
Que o novo voo seja belo.
Fernando Vilas Boas
Papel de embrulho
O Natal veio com as luzes cintilantes e as montras sedutoras e numa noite e um dia esvaneceu-se. Cumpriu-se a tradição, não faltaram as rabanadas, a aletria, o bolo-rei e o bacalhau. Junto à árvore de Natal acumulavam-se os presentes. O frenesim das compras deu lugar ao recolhimento em família e até a música de Natal deixou de ser só Quickstep ou Jive, para deixar brilhar o Slowfox, a Rumba e a Valsa Inglesa. Da janela de casa olho lá para baixo. O lixo produzido pelas famílias é imenso. O papel de embrulho é o rei da lixeira. Desprezado, depois de ter cumprido a sua missão como ninguém, ocultando os presentes, embelezando as caixas, sacrificando-se por um momento de volúpia e curiosidade, é atirado fora, feito lixo nauseabundo, misturado com a trampa, conspurcado pelos fritos, renegado como um inútil, depois de ter prestado valentemente o seu serviço e sem direito a um renascer das cinzas no centro de reciclagem!
Ceias de Natal
Manual de Sobrevivência
Esta semana foi pródiga em jantares oficiais e outros que tais. Entre os que somos forçados a ir, por questões profissionais, sem haver escapadela possível, e os que são uma forma de rever amigos que há séculos não vemos, o corpo e a mente exigem um exercício de autodisciplina e a observância de algumas regras simples, qual manual de sobrevivência. A questão económica põe-se sempre, em tempos de crise e numa época natalícia de exagerado consumo. Se a agenda for de tal maneira sobrecarregada com ceias de Natal, a chegada para a sobremesa é sempre eficaz, não deixa de se estar presente, evita-se a conta e ainda se tem muito tempo para convívio pelo resto do serão dentro. A questão social é mais delicada. Ou se opta por um convívio à descoberta, travando conversa com alguém que se conhece superficialmente ou, estando a companhia a ser um suplício, de mansinho, colocar um CD de música de salão. Em todas as circunstâncias deve haver sempre este recurso, o que nos leva para a última questão: o físico. O excesso de calorias da noite deve ser imediatamente colmatado com um baile espontaneamente realizado no salão, mesmo que os pares não saibam dar uns passinhos. Toda a gente se mexe e o importante mesmo é queimar a ceia, o mais rapidamente possível, para manter a forma. Os dotes artísticos vão sobresair e os colegas dirão ou se forem tímidos pensarão: não fazia ideia que bailavas tão bem, contigo diverto-me imenso!
A dança da chucha
A chupeta é um objecto que pela sua natureza simples se torna num verdadeiro enigma. As acções a ela associadas, podem revelar-se uma tortura cíclica, sem fim à vista. É a dança da chucha que obriga a uma tensão permanente entre tê-la e não tê-la. Assim começa o baile que a chupeta nos dá, quando não quer ser ajustada à mola de segurança, os nós que são precisos dar para a manter segura e presa, as camadas de roupa de bébé que são precisas para a segurar, para não ser arrastada no chão, as constantes lavagens e esterelizações, por último, no climax da dança da chupeta, o seu sumisso misterioso. Depois são as voltas e reviravoltas estonteantes à procura da chucha, que nunca está onde esteve e que sempre dança onde nunca dançou!
A Hipocrisia das Palavras
«No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas.
Deus disse: «Faça-se a luz.» E a luz foi feita.
Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite.
Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia.»
(Criação do Mundo - Livro Génesis, Capitulo I)
Depois de criar cada coisa, Deus deu-lhe um nome.
A criação ficou ligada à palavra.
O que não tem nome não existe para nós.
Sabemos que cada dança tem o seu nome, assim como cada passo.
E se alguém inventa um passo novo, logo trata de lhe fazer o baptismo.
Não aceitamos o vazio e damos nome até a fenómenos naturais como vulcões, furacões, tornados, etc.
Lembra-me o tempo em que não se falava do “politicamente correcto”.
Sempre existiu hipocrisia, mas acho que, mais do que hoje, as coisas eram chamadas pelos seus nomes.
Um cego era um cego e não um invisual.
Um surdo era surdo ou até mouco e não deficiente auditivo.
Um coxo era coxo e não uma pessoa com mobilidade diminuída.
Um preto era um preto e não um afro-americano.
Um discurso começava por “minhas senhoras e meus senhores” e não por “Cidadãs e cidadãos”.
Um drogado era um drogado e não um toxicodependente.
Sei que existe o preconceito e sempre existirá.
Mas o preconceito não está nas palavras.
O preconceito está nos lábios de onde elas saem, na mão que as escreve ou até nos olhos de quem as lê.
Actualmente mudam-se as palavras para encobrir o preconceito.
O preconceito passou a ser servido em palavras higienizadas.
Lembro-me de um dia ter perguntado a um amigo “coxo” se entrava numa corrida de miúdos, pela simples razão de sempre o ter visto como uma pessoa normal.
Brinquei com amigos “de cor”, sem nunca ver diferenças.
Nunca percebi o racismo, mas já me senti discriminado por ser branco. Estamos pouco habituados a isso…
Sei que, com as mudanças se transformaram em vexatórias e inconvenientes palavras que não o eram, obrigando-nos a todos a aderir às novas modas.
Mas a hipocrisia e a discriminação continuam por aí, por vezes encobertas em belas palavras.
Aproxima-se o Natal e novamente as belas palavras.
Gostaria que trouxesse apenas novas ideias.
Fernando Vilas Boas
Dançar no Natal
Faz frio, a temperatura desceu consideravelmente. A vontade para sair para uns passinhos de dança torna-se nesta altura natalícia diminuta! Remédios não há, mas apenas resistir ao quentinho da casa, vestir o equipamento e sair disparado pela porta fora. Para atenuar a vontade enregelada, há sempre uns discos de Natal que trazem umas surpresas muito agradáveis. Recentemente surgiu na nossa sala lá de casa uma promoção natalícia com um CD incluído. Pouco inclinado para a promoção, lá coloquei o disco no leitor, pensando: “lá vem mais lixo publicitário”. A surpresa foi grande quando me deparei comigo mesmo a dançar uns passinhos de Jive, Quickstep e Valsa Inglesa. Abençoado disco! Só me resta celebrar o Natal e a bombar!
OS AMIGOS
Tenho a sorte de ter bons amigos.
Daqueles que posso passar anos sem nos vermos, mas quando nos reencontramos é como se sempre estivéssemos juntos.
Daqueles que eu ajudo ou me ajudam, sem perguntar porquê. Basta dizer o que é preciso.
Daqueles que não precisam de grandes palavras, basta a presença.
Com as danças, ganhei novos amigos, incluindo os que lêem este texto.
Todos temos amigos.
Podemos até sobreviver sem amor, mas não vivemos sem amigos.
Por vezes, numa conversa banal saem ideias profundas.
Na última sexta, uma colega disse que seria sempre amiga de outra, independentemente do que ela fizesse.
É esse o espírito da amizade.
É esse o espírito da turma de sexta.
Amigos não se julgam!
Nunca me arrependi de dar atenção, mesmo aos “amigos da onça”.
A disponibilidade para ter amigos passa por aceitar a todos.
Ninguém despreza uma amizade sincera.
Como dizia Vinicius de Morais: «A gente não faz amigos, reconhece-os».
Aos amigos do baile de sexta e a todos os outros
Fernando Vilas Boas
UM TIGRE NO ARMÁRIO
O que querem as mulheres?
Somos todos imperfeitos e é essa a nossa perfeição.
A imperfeição começa por sermos mortais.
Mas se não fossemos mortais não dançaríamos. Nada faríamos, pois teríamos toda a eternidade para tal.
A imperfeição também está no sentimento de que somos incompletos. Por essa razão, em regra procuramos alguém. Sem isso não haveria a continuação da espécie.
É aqui que a coisa se complica!
Homens e mulheres vêem o mundo de perspectivas radicalmente diferentes. Nenhum pode dizer que a sua é melhor que a outra. Jamais se compreenderão perfeitamente.
Sinal da nossa imperfeição? Decididamente não!
Se fossemos “livros abertos” não haveria desafio. Rapidamente cairíamos numa rotina banal e desinteressante.
O desafio de perceber o outro é o motor de todos os relacionamentos. Mas se for um desafio impossível desistimos. Por isso, a dificuldade está em encontrar o equilíbrio.
Na última sexta, uma colega falou de um homem que ela e outras presentes conheciam e acrescentou que soube que ele é professor de dança.
A julgar pelo olhar das colegas presentes, essa novidade, esse “lado desconhecido” mudou radicalmente a forma como o viam.
Nunca nos conhecemos totalmente, a nós e aos outros.
Sei do ditado que diz que do homem forte ninguém conhece a força.
Mas será que elas procuram um tigre no armário?!
Querem-nos esclarecer?
Ou também não sabem muito bem?!
Fernando Vilas Boas